quinta-feira, 27 de agosto de 2009

9- Latrão I

9
PRIMEIRO CONCÍLIO DO LATRÃO
(IX Ecumênico1, segundo Roma)


*(1) A partir do primeiro concílio de Latrão, reunido em 1123, os concílios não foram considerados autenticamente ecumênicos pela totalidade da cristandade, pois só foram convocados pelo sistema católico romano.
O Concílio de Latrão I, foi convocado pelo papa Calisto II e reunido no ano 1123 na basílica de São João de Latrão, uma das maiores de Roma, para resolver a controvérsia das investiduras, a reforma gregoriana do calendário e as indulgências para os que se alistassem nas cruzadas e a Trégua de Deus. Este concílio decidiu que os bispos católicos fossem nomeados pelo papa romano.

Panorama eclesiástico nos tempos do feudalismo

No décimo século, já a igreja, ou melhor, seu governo nicolaíta, converteu-se na prolongação da sociedade feudal, e os prelados eclesiásticos chegaram a ser nomeados pelos senhores feudais, dentre seus próprios adictos; de onde, bispos, abades e sacerdotes que chegaram a possuir terras, deviam ocupar-se de sua administração. Sem dúvida, homens sem sentimentos religiosos e muito menos vocação, escalam as altas hierarquias eclesiásticas com o único objetivo de usufruir seus múltiplos benefícios. A isto a Palavra de Deus chama de nicolaísmo; isto, e a simonia, ou compra de investiduras eclesiásticas ao suserano por parte de ímpios, impregnaram a cristandade de um espírito mundano sem comparação na história. Mas o curioso é que o feudalismo eclesiástico tinha tido sua origem em Roma e seu sistema papal, com as falsas doações de Constantino, logo as de Pepino o Breve, Carlo-Magno e seus sucessores; de modo que o papa também era um senhor feudal, e tudo o que dispõe de algum poder temporário, defende-o até com o uso das armas, como de fato ocorreu no sistema papal romano. Todo esse incontido deslize de imoralidade e corrupção nas esferas eclesiásticas romanas chegou ao cúmulo durante um período chamado "pornocracia romana", nos tempos da famosa Marozia.
Ainda no começo do nono século, a eleição dos papas era feita pelo clero e a nobreza romana, mas condicionada à ratificação dos imperadores franco-germânicos; este último imposto desde o sínodo romano do ano 898, o famoso "sínodo do cadáver", quando o papa João IX (898-900) reivindicou a memória da tristemente célebre papa Formoso (891-896), cujo cadáver tinha sido desenterrado e julgado pelo papa Estevão VI (896-897); de maneira que foi uma época quando se derramou muito sangue papal devido à ambição dos homens, as intrigas políticas, matando uns com outros para escalar uma tão alta posição eclesiástica; mas o mais triste é que dizem que o fazem no nome do Senhor. Inclusive o próprio João IX e seus sucessores foram considerados como intrusos e lobos rapaces; mas não queremos nos ocupar da lista de mortes sangrentas, a não ser destacar que como os imperadores deviam ratificar a eleição dos papas, chegou a ocasião em que imperadores chegassem a depor papas e a colocar anti-papas em seu lugar, e alguns deles foram assassinados pela nobreza romana, pelo fato de serem estrangeiros, tais como Benedito VI (972-974), imposto pelo imperador Otão, e Clemente II (1046-1047), imposto pelo imperador Henrique II, de quem tinha sido capelão da corte. Os grandes nobres romanos acreditavam ter o direito de escolher o papa.
Durante o reinado de Benedito IX (1033-1045,47), por certo um dos papas mais libertinos da história, houve tanta intriga, que durante certo tempo houve três pontífices rivais simultaneamente, cada um com a ostentação da pretendida legitimidade. Gregório VI (1045-1046), no sínodo de Sutri (no qual foi deposto Silvestre III)
confessou que tinha alcançado a sede romana mediante uma boa soma de dinheiro paga a Benedito IX.
Até nas épocas mais obscuras pelas que tem passado a Igreja de Jesus Cristo, é alentador saber que nem tudo foi tenebroso e corrupto. Embora duvidemos, mas como nos tempos do Elias no Antigo Testamento, também nessa época houve verdadeiros e fiéis servos do Senhor, os quais, embora escondidos e incógnitos, estavam inteirados da amarga situação, e clamavam por uma reforma da Igreja.
A reação para o ascetismo que tinha ocorrido com ocasião do matrimônio da Igreja com o mundo a partir de Constantino o Grande, em um intento por reformar as coisas, volta-se a repetir na Idade Média frente às novas incursões de imoralidade clerical, feudalização das altas hierarquias eclesiásticas, o nicolaísmo e a simonia, em uma laboriosa busca de uma forma perfeita de vida cristã. Houve épocas na história em que as pessoas fugiam do mero nominalismo, pensando que podiam ganhar o céu submetendo-se a disciplinas e rigores religiosos; de modo que se multiplicaram os movimentos monásticos, os quais influíram em algumas mudanças na política papal, em especial o do Cluny, ao norte de Lião, França, cuja escola de pensamento se fez sentir sobre tudo com o Hildebrando, um personagem que decididamente teve muita influência sobre o papado e sobre os concílios papais da Idade Média, quem depois de ser conselheiro de muitos papas, chegou à sede pontifícia com o nome do Gregório VII (1073-1085), e se destacou trabalhando para independentizar à igreja do poder temporal; mas se foi a mão, chegando inclusive a colocar aos reis e senhores feudais sob a autoridade papal.
Hildebrando desdobra uma tortuosa política a fim de impor seu domínio sobre o imperador e todos os príncipes europeus. Gregório VII afirmou que cada homem batizado, pelo mesmo fato de sê-lo, converte-se em um súdito do papa romano durante toda sua vida, queira-o ou não, quem pode castigá-lo por cada pecado inclusive com a pena de morte e confisco de bens. Este ardiloso papa, para levar a cabo tremenda transformação de ordem moral, político, religiosa, doutrinal e ritual, além de sua maquinaria (seus monges clunicenses), pôs a funcionar as famosas Decretais pseudo-isidorianas, base fundamental para a reforma gregoriana, de cujos falsos documentos surgem suas vinte e sete pretendidas afirmações, que se conhecem como "Dictatus papæ", das quais destacamos as seguintes:

2. "Que só o seja dito legitimamente universal
3. "Só ele pode depor ou reabilitar aos bispos".
8. "Só ele pode usar as insígnias imperiais".
9. "Ele é o único homem cujos pés devem beijar todos os príncipes".
11. "O título de Papa pertence só a ele (ao bispo romano)".
12. "lhe é lícito depor aos imperadores".
13. "Nenhum capítulo e nenhum livro tem que se ter por canônico sem sua autoridade".
16. "Nenhum sínodo pode ser chamado geral sem sua autorização".
18. "Uma sentença do papa não pode ser anulada por ninguém, mas sim por ele mesmo".
19. "O papa não pode ser julgado por ninguém".
20. "Ninguém se atreva a condenar ao que recorre à a Santa Sede".
21. "As causas de maior entidade de qualquer igreja têm que levar-se ante o tribunal de dita sede".
22. "A igreja romana não errou jamais nem errará".
26. "que não está em paz com a Igreja romana não será tido por católico".
27. "O papa pode relevar aos súditos do dever de fidelidade aos soberanos perversos".

Julgue o leitor se o que escreve e demanda estas coisas pode ser vigário daquele que, não tendo nenhuma pedra para recostar Sua cabeça, disse: "Sabem que os governantes das nações se assenhoreiam delas, e os que são grandes exercem sobre elas potestade. Mas entre vós não será assim, mas sim o que quiser fazer-se grande entre vós será seu servidor, e o que queira ser o primeiro entre vós será seu servo; como o Filho do Homem não veio para ser servido, a não ser para servir, e para dar sua vida em resgate de muitos" (MT. 20:25-28). É curioso que o ponto dois já tinha sido condenado pelo papa Gregório I (590-604), quem tinha afirmado que quem quer chamar-se a si mesmo sacerdote universal, resulta ser precursor do anticristo, pois se coloca por cima de todos outros.

À medida que se foi abandonando a simplicidade do evangelho, foi difundindo entre a cristandade a crença em superstições, até o ponto de chegar ao convencimento (o qual perdurou até o dia de hoje nos meios católicos romanos) de que mediante a adoração de relíquias e a peregrinação a certos lugares da "Terra Santa" que tinham sido cenários da vida e ministério terrestre de Jesus, poderão ter benefícios espirituais especiais. Foi assim como do século V se iniciaram as peregrinações a Palestina, com o convencimento de que quem morria durante essa viagem, esse fato ganhava o céu; daí as grandes multidões que se dirigiram a Palestina no discorrer dos séculos.
Ao surgir o Islã, e em particular a irrupção dos turcos, essas peregrinações se impossibilitaram. Foi assim como foi impactante e decisivo o chamado às Cruzadas lançado pelo papa Urbano II (1088-1099) (rival e contemporâneo do papa Clemente III) no século XI, o qual foi respondido pelas massas feudais com o famoso "Deus o quer". Com as Cruzadas, o papa, além de resgatar os lugares Santos, obtinha um pretexto para formar uma frente comum contra os muçulmanos e de passagem canalizar o "ardor" religioso e unificar a cristandade ocidental, que na ocasião sangrava em luta fratricida, em um continente "cristão", aonde até o próprio papa romano houve épocas de dispor de um exército regular. Para animar tanto aos príncipes europeus como a suas gentes a que se alistassem a matar a seus semelhantes em nome da verdadeira fé, o papa mesmo se encarregava de arengá-los, lhes prometendo o perdão dos pecados e o céu . De maneira que em Clermont, Urbano II inventou o assunto das indulgências, que tanto dano tem feito à humanidade. Uma síntese de suas arengas pode ser: "Se aqueles que forem à cruzada perdem a vida durante a viagem, na terra ou no mar, ou em alguma batalha contra os pagãos, seus pecados serão perdoados. Concedo-o pelo poder que Deus me deu. A um lado os inimigos de Deus; ao outro seus amigos". É triste registrar que por ordem do suposto representante de Deus, em 1099, Jerusalém foi tomada por estes cruzados, e quase todos seus habitantes foram passados à espada, fossem muçulmanos ou cristãos do Oriente; e os sacerdotes cristãos gregos, coptos e sírios que guardavam os Santos Lugares sofressem horríveis tortura a fim de que revelassem onde se encontrava a verdadeira cruz onde foi crucificado o Senhor.
depois de muitos anos de lutas e intrigas entre os nobres, o imperador e o papado romano, com antipapas a bordo, sobre tudo pelo relacionado com o assunto das investiduras secular dos bispos, duvidosas e até espúrias eleições dos papas e imposição de rivais, por fim, e depois da convocatória de muitos sínodos, foi assinada a paz mediante uma concordata assinada em uma assembléia reunida na cidade de Worms, em 23 de setembro do ano 1123; e para confirmar solenemente esses acordos, o papa francês Calisto II (1119-24) convocou o Concílio de Letrão, reunido em 15 de março de 1123. Ao subir ao pontificado, o papa Calisto II revogou a concessão de investidura laica concedida ao imperador Henrique V, o que tinha originado uma série de disputas, mas já assinado a Concordata, soleniza-se no Concílio.

O concílio

Fazendo um pouco de história registramos que o templo de São João de Letrão é uma das cinco basílicas patriarcais de Roma, construída pelo imperador Constantino no ano 324 junto ao palácio de Letrão da antiga Roma, e que foi de propriedade da família de Constantino, o qual, conforme a falsa "Doação de Constantino", este doou para que fosse a sede do bispo de Roma, o qual se deu durante uns dez séculos.
A partir do presente Concílio ecumênico de Letrão, estas grandes assembléias foram convocadas e controladas pelo papado romano, de maneira que até o Concílio Vaticano II se trata de concílios papais em todo o rigor da palavra. Hildebrando, apoiado nas Decretais pseudo-Isidorianas, acabou com os concílios soberanos, e não é um segredo que os concílios medievais eram meramente uns conselhos, pois quem na verdade legislava era o papa.
No primeiro Concílio de Letrão se ratificaram os documentos da Concordata de Worms. O imperador renunciou ao direito de investidura, reconciliou-se com a igreja e devolveu as regalias expropriadas. A Igreja Católica Romana restaurou sua liberdade para a eleição e consagração de seus prelados. Proibição da simonia e o concubinato dos clérigos.
Foi proibida a intromissão laica nos assuntos eclesiásticos. Tenha-se em conta que nesse tempo já estava bem enraizado o nicolaísmo e a divisão da igreja entre clero e laicos, de maneira que se tinha consolidado a idéia de chamar "igreja" ao sistema dominado pelo clero. Diz a Palavra de Deus que na Igreja do Senhor todos somos sacerdotes.
"4 Chegando-vos para ele, pedra viva, desprezada certamente pelos homens, mas para Deus escolhida e preciosa, 5 vós também como pedras vivas, sede edificados como casa espiritual e sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus por meio de Jesu Cristo. 9 Mas vós sois linhagem escolhida, real sacerdócio, nação Santa, povo adquirido Por Deus, para que anunciem as virtudes daquele que lhes chamou das trevas à sua luz admirável" (1 Pedro 2:4-5,9).
A respeito das cruzadas, aprovou-se a remissão de penas temporárias aos que se alistassem para a "guerra Santa contra os infiéis", garantiam-lhe seus bens e família, mas castigavam a quem se negasse a cumprir seus votos de ir resgatar o Santo Sepulcro e outros lugares. Com isto se aprovou um método de "evangelização" muito distante do ordenado pelo Senhor, o Príncipe de Paz, pois a piedade medieval não dependia nem se alimentava da vida do Espírito, verdadeiro vigário de Cristo, mas sim das relíquias impostas pelo sistema de um falso vigário. Tenha-se em conta que a Palestina era o manancial das relíquias, onde supostamente se encontravam os objetos "sagrados" relacionados com o Senhor e Seus mártires.
O partido gregoriano e o espírito cluniacense predominantes neste concílio, estiveram longe de arrumar a rivalidade imperante entre as duas forças que regiam a vida na Idade Média: a Igreja e o Estado, pois as doutrinas gregorianas propugnavam pela supremacia do papado sobre outros poderes. Os leigos não poderão dispor das propriedades eclesiásticas, mas os bispos e o papa seguiriam gozando de seus privilégios e regime feudal, o qual gera novos enfrentamentos posteriores.Com este Concílio se inicia uma nova modalidade canônica: Os cânones conciliares não foram decretados pela assembléia de bispos mas sim pelo papa. Por fim a cristandade ocidental caía inteiramente em mãos do papado romano, e em cujas assembléias "ecumênicas" os bispos eram umas meros bonecos, e a política gregoriana coroava um grande triunfo. O catolicismo romano tinha obtido a completa submissão da autoridade civil à eclesiástica. Ficaria resolvido o consuetudinário enfrentamento entre o papa romano e o imperador?

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